“Tragédia e reparação
O governo federal vai cobrar dos donos da boate Kiss, em Santa Maria (RS), os benefícios previdenciários pagos aos familiares e às vítimas do incêndio que matou 237 pessoas em 27 de janeiro. A AGU (Advocacia Geral da União) vai impetrar ações regressivas previdenciárias para receber de volta o valor gasto em pensões e aposentadorias. Medidas desse tipo já são adotadas, com êxito, em acidentes por falta de segurança no trabalho e agressões enquadradas na Lei Maria da Penha”.
Se o governo terá de arcar com os custos previdenciários do dano causado por uma pessoa – no caso, pela boate – nada mais lógico do que ele buscar ressarcimento junto a quem causou o dano.
A ideia é não só preservar os cofres públicos, mas também uma questão de política pública: não espere que o governo simplesmente pague por seus erros e fique por isso mesmo.
A princípio, a ideia parece boa e serve de instrumento para saciar o descontentamento da sociedade em relação à tragédia. Mas há alguns pontos que precisam ser considerados com cuidado.
Se o governo será ressarcido por seus custos, para que serve as contribuições previdenciárias que pagamos? É justo que ele continue cobrando esses custos da sociedade?
Contribuições sociais têm fins específicos. Óbvio que haverá sempre casos em que o governo não conseguirá ser ressarcido e para esses casos, é necessário contribuições sociais adequadas. Mas não para o que será ressarcido.
Imagine, por exemplo, se o governo consiga ser ressarcido por 10% de todos os benefícios que tiver que pagar. Ele não deveria reduzir as contribuições proporcionalmente?
Por um lado o governo deve preservar os cofres públicos e utilizar tais pagamentos para punir quem causa danos aos cofres públicos. Por outro lado, ele já cobra dos contribuintes para cobrir o que é gasto. O perigo é que tragédias passem a ser um mecanismo de gerar superávit fiscal. E isso é perigoso porque pode haver um incentivo indireto para que o governo deixe que tragédias aconteçam ou ao menos não se importe se elas acontecerem. Pense em multas de trânsito: elas servem para coibir condutas perigosas ou para gerar arrecadação para os cofres públicos? Quando a arrecadação de fundos através de multas passa a ser o principal objetivo, podemos estar inadvertidamente criando uma situação de Estado versus sociedade, na qual o Estado busca formas de multar mais eficientemente, enquanto o verdadeiro objetivo deveria ser evitar acidentes. Em direito previdenciário esse é um cenário especialmente perigoso, pois é a área de direito onde Estado e sociedade precisam andar mais próximos um do outro.
O direito previdenciário não foi desenvolvido como mecanismo de punição. Para isso existem as esferas penal, civil e administrativa. O direito previdenciário funciona como uma rede de proteção. Se ele passa a ser uma arena de punição, há um risco real de a sociedade perder essa rede de proteção social. Pior: há o risco de quem errou ser punido mais de uma vez e o ressarcimento ao governo ser muito a mais ou muito a menos do que o devido (as ações regressivas contra quem causou o dano são pagas em um momento determinado. Mas as pensões e aposentadorias se estendem por anos ou décadas. Logo, os valores do que será pago como ressarcimento ao governo no processo e o que o governo irá de fato gastar ao longo dos anos provavelmente não serão parecidos, pois o primeiro é pago baseado em uma estimativa, apenas).